Responsabilidade civil por violência de torcidas organizadas: um caso emblemático envolvendo clube e associação

A decisão que condenou solidariamente a Sociedade Esportiva Cruzeiro Esporte Clube e a Associação Recreativa Cultural Torcida Máfia Azul ao pagamento de indenização por danos morais reacende o debate sobre a responsabilidade civil de clubes e torcidas organizadas pelos atos de violência de seus integrantes. O caso analisado retrata um episódio trágico que ultrapassa o âmbito esportivo e coloca em evidência o dever jurídico de prevenir e reparar danos à vida e à dignidade humana.

 

1) O caso e a fundamentação da responsabilidade

O processo teve origem em um episódio de extrema violência ocorrido em 28 de novembro de 2021, quando um ônibus de transporte coletivo foi cercado por integrantes da torcida organizada “Máfia Azul”. Os torcedores atacaram o veículo com paus, barras de ferro e fogos de artifício, incendiando-o. O filho do autor, que estava no interior do coletivo, tentou fugir, mas foi perseguido e espancado até a morte.

As provas reunidas, especialmente o boletim de ocorrência e a denúncia criminal, confirmaram a autoria das agressões e o vínculo dos agressores com a torcida organizada. A Polícia Militar de Minas Gerais atestou que os envolvidos eram, de fato, associados da “Máfia Azul”, inclusive um deles ocupava o cargo de presidente da entidade.

Com base nisso, o juízo reconheceu a responsabilidade objetiva e solidária da torcida organizada e do clube esportivo pelos danos causados, nos termos da Lei nº 14.597/2023 (Lei Geral do Esporte), que reforçou o dever de reparação por atos praticados por membros ou associados em eventos esportivos, em suas imediações ou no trajeto de ida e volta.

 

2) Responsabilidade das torcidas organizadas

O art. 178, § 5º, da Lei Geral do Esporte é categórico ao estabelecer que as torcidas organizadas respondem civilmente, de forma objetiva e solidária, pelos danos causados por seus associados. Isso significa que não é necessário provar culpa — basta a comprovação do vínculo do agressor com a torcida e do dano causado.

Esse regime jurídico visa coibir a impunidade e reforçar o caráter preventivo da responsabilidade civil. As torcidas, enquanto pessoas jurídicas, devem adotar medidas eficazes de controle, identificação e fiscalização de seus membros, assumindo o risco social da atividade que desenvolvem.

 

3) Responsabilidade dos clubes esportivos

No caso em questão, o clube Cruzeiro Esporte Clube também foi condenado de forma solidária. Ainda que o evento não tenha ocorrido durante uma partida promovida pelo clube, a decisão reconheceu que a torcida organizada está institucionalmente ligada à imagem da agremiação, razão pela qual o clube tem dever de vigilância e cooperação na prevenção de episódios violentos.

A decisão aplicou o art. 927 do Código Civil, segundo o qual “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Assim, ao não adotar medidas eficazes para impedir a atuação de grupos violentos vinculados à sua marca e símbolo, o clube assume o risco da atividade e responde civilmente pelos danos decorrentes.

 

4) O dano moral e sua quantificação

O dano moral foi reconhecido como evidente diante da brutalidade dos fatos e da perda irreparável do filho da parte autora. O juízo destacou que a violência, praticada de forma coletiva e premeditada, ultrapassou todos os limites da razoabilidade, configurando ofensa direta aos direitos da personalidade.

Com base nos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, a indenização foi fixada em R$ 100.000,00, quantia destinada a compensar o sofrimento do autor e, simultaneamente, cumprir função pedagógica, desestimulando novas condutas violentas de torcidas organizadas e omissões institucionais de clubes.

 

5) O novo marco da Lei Geral do Esporte

A Lei nº 14.597/2023 consolidou dispositivos antes dispersos em diferentes diplomas e reforçou a responsabilidade civil objetiva das torcidas e clubes. O art. 178 é um marco importante porque reconhece que a violência no esporte não é um fato isolado, mas um risco previsível e prevenível.

A norma busca assegurar o ambiente seguro e pacífico nos eventos esportivos, impondo responsabilidade direta a quem tem poder de organização e controle sobre seus membros. Assim, quando há omissão ou falha no dever de vigilância, o dever de indenizar torna-se inafastável.

 

6) Relevância social da decisão

A condenação solidária de torcida organizada e clube possui impacto que transcende o caso concreto. Representa um avanço na responsabilização de entidades que, historicamente, se eximiam dos atos violentos de seus integrantes.

Ao reconhecer o nexo institucional entre o clube e a torcida, o Judiciário reafirma a necessidade de corresponsabilidade na promoção da segurança pública e na preservação da integridade física e moral dos cidadãos.

Além disso, a decisão reafirma a função social do esporte como atividade voltada à convivência pacífica e ao bem-estar coletivo, não podendo servir de pretexto para a barbárie.

 

7) Conclusão

O caso envolvendo o Cruzeiro Esporte Clube e a Máfia Azul ilustra com clareza a aplicação dos princípios da responsabilidade civil objetiva e da solidariedade nas relações esportivas. O dano moral decorrente da morte de um torcedor, em circunstâncias de violência organizada, exige resposta firme do Poder Judiciário.

A Lei Geral do Esporte fortalece o entendimento de que clubes e torcidas organizadas devem responder pelos atos de seus membros, especialmente quando há prova de vínculo e de omissão no dever de prevenção.

A decisão proferida reflete um marco na evolução da jurisprudência brasileira, reafirmando que a paixão pelo futebol jamais pode se sobrepor à vida, à dignidade e à segurança das pessoas.

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