Lei Federal nº 14.133/21 e a Ultratividade da Lei Federal nº 8.666/93: entenda as Implicações para Contratos e Atas de Registro de Preços

A entrada em vigor da Lei Federal nº 14.133/21 trouxe consigo questionamentos sobre a continuidade e aplicação da Lei Federal nº 8.666/93 em contratos e procedimentos licitatórios já em curso. Essa preocupação se intensifica especialmente em relação às atas de registro de preços e sua eventual prorrogação. Neste artigo, abordaremos as implicações dessas mudanças legislativas e as possibilidades de continuidade ou não das atas de registro de preços.

 

Previsões da Lei Federal nº 14.133/21

A Lei Federal nº 14.133/21 prevê duas hipóteses de ultratividade da Lei Federal nº 8.666/93, que foi revogada pela primeira. São elas:

  • Art. 190: O contrato cujo instrumento tenha sido assinado antes da entrada em vigor desta Lei continuará a ser regido de acordo com as regras previstas na legislação revogada.
  • Art. 191: Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.
  • Parágrafo único. Na hipótese do caput deste artigo, se a Administração optar por licitar de acordo com as leis citadas no inciso II do caput do art. 193 desta Lei, o contrato respectivo será regido pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.

Portanto, até o final do prazo definido na legislação, a Administração Pública poderia licitar ou contratar de acordo com as normas da Lei Federal nº 8.666/93, sendo que, neste caso, o procedimento de licitação (desde que o edital tenha sido publicado até 30/12/2023) e o contrato decorrente seguiriam o regime da lei revogada até o seu término. Após 30/12/2023, a observância da Lei Federal nº 14.133/21 é mandatória, não mais havendo discricionariedade do agente público para optar pela legislação anterior.

 

As Atas de Registro de Preços

As atas de registro de preços constituem um vínculo obrigacional – podemos dizer até contratual, embora a vnão tenha utilizado tal termo para não as confundir com os contratos que são celebrados com os detentores da ata – celebrado após o regular procedimento licitatório.

A Lei Federal nº 14.133/21 conceitua atas de registro de preços como "documento vinculativo e obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação, no qual são registrados o objeto, os preços, os fornecedores, os órgãos participantes e as condições a serem praticadas, conforme as disposições contidas no edital da licitação, no aviso ou instrumento de contratação direta e nas propostas apresentadas".

No caso de atas de registro de preços, portanto, já houve uma licitação e a assinatura da ata de registro dos preços. As contratações decorrentes não são contratações diretas, mas precedidas de licitação.

 

A Prorrogação de Atas de Registro de Preços e a Ultratividade da Lei n. 8.666/93

Diferentemente do que ocorre na União, alguns municípios permitem a prorrogação das atas de registro de preços por mais um ano e, portanto, a avaliação da viabilidade de prorrogação, após 30/12/2023, de atas de registro de preços celebradas nos termos da lei anterior, exige um esforço interpretativo.

Por um lado, podemos fazer uma analogia das atas de registro de preços com os contratos, previstos no art. 190 da Lei nº 14.133/21 como hipóteses de ultratividade da Lei nº 8.666/93. Assim, se os contratos regidos pela lei anterior devem continuar a produzir efeitos nos termos da lei anterior (admitindo-se inclusive a sua prorrogação, se prevista no instrumento contratual), igual regra deveria ser aplicada às atas de registro de preços, que também possuem caráter vinculativo.

No Brasil, vige a regra do tempus regit actum, de forma que a lei que rege um ato é a lei da época da sua constituição. A Constituição, ademais, preserva o ato jurídico perfeito de mudanças legislativas supervenientes (art. 5º, inc. XXXVI). Conforme decidido pelo STF no Agravo de Instrumento nº 244.578/RS (Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 23/6/1999):

"No sistema constitucional brasileiro, a eficácia retroativa das leis - (a) que é sempre excepcional, (b) que jamais se presume e (c) que deve necessariamente emanar de disposição legal expressa - não pode gerar lesão ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada.

A lei nova não pode reger os efeitos futuros gerados por contratos a ela anteriormente celebrados, sob pena de afetar a própria causa - ato ou fato ocorrido no passado - que lhes deu origem. Essa projeção retroativa da lei nova, mesmo tratando-se de retroatividade mínima, incide na vedação constitucional que protege a incolumidade do ato jurídico perfeito.

A cláusula de salvaguarda do ato jurídico perfeito, inscrita no art. 5º, XXXVI, da Constituição, aplica-se a qualquer lei editada pelo Poder Público, ainda que se trate de lei de ordem pública. Precedentes do STF."

A mesma preocupação com a segurança e estabilidade das relações se refletiu no RE nº 948.634/RS (Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. em 20/10/2020):

"VII - A dimensão temporal é inerente à natureza dos contratos de planos de saúde, pois as operadoras e os segurados levaram em conta em seus cálculos, à época de sua celebração, a probabilidade da ocorrência de riscos futuros e as coberturas correspondentes.

VIII - As relações jurídicas decorrentes de tais contratos, livremente pactuadas, observada a autonomia da vontade das partes, devem ser compreendidas à luz da segurança jurídica, de maneira a conferir estabilidade aos direitos de todos os envolvidos, presumindo-se o conhecimento que as partes tinham das regras às quais se vincularam.

IX - A vedação à retroatividade plena dos dispositivos inaugurados pela Lei 9.656/1998, como aqueles que dizem respeito à cobertura de determinadas moléstias, além de obedecer ao preceito pétreo estampado no art. 5°, XXXVI, da CF, também guarda submissão àqueles relativos à ordem econômica e à livre iniciativa, sem que se descuide da defesa do consumidor, pois todos encontram-se expressamente previstos no art. 170 da CF.

X – Os contratos de planos de saúde firmados antes do advento da Lei 9.656/1998 constituem atos jurídicos perfeitos, e, como regra geral, estão blindados contra mudanças supervenientes, ressalvada a proteção de outros direitos fundamentais ou de indivíduos em situação de vulnerabilidade.

(...)

XII – Em suma: As disposições da Lei 9.656/1998, à luz do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, somente incidem sobre os contratos celebrados a partir de sua vigência, bem como nos contratos que, firmados anteriormente, foram adaptados ao seu regime, sendo as respectivas disposições inaplicáveis aos beneficiários que, exercendo sua autonomia de vontade, optaram por manter os planos antigos inalterados."

 

Conclusão

Essas normas e princípios gerais relacionados à segurança jurídica (e à estabilidade das relações) foram observadas na Lei federal nº 14.133/21, que preservou de forma expressa os contratos (e mesmo os procedimentos licitatórios cuja fase externa já tinha se iniciado) firmados nos termos da lei anterior. De todo modo, ainda que a lei não tivesse regra de transição específica a esse respeito, possivelmente, considerando seus precedentes, o STF teria salvaguardado da aplicação da lei nova às relações jurídicas entabuladas nos termos da lei antiga.

Assim, parece-nos que a situação deve ser analisada conforme as premissas desenhadas pela Suprema Corte, garantindo-se a preservação das relações já constituídas anteriormente à inovação legislativa. Nesse sentido, seria admissível a preservação das atas de registro de preços já assinadas e a continuidade da sua regência de acordo com o regime legal anterior, da época em que celebrada ou licitada.

E, se assim for, seria consequentemente admissível a prorrogação das atas de registro de preços celebradas sob a égide do regime legal anterior. Igualmente, seguiria admissível a possibilidade de contratações decorrentes das atas de registro de preços e adesões a elas, na medida em que a Lei federal nº 14.133/21 não previu quaisquer restrições no que diz respeito à continuidade e regularidade das relações jurídicas constituídas de acordo com a lei anterior.

Repare que, se considerássemos inviável a prorrogação da ata de registro de preços, consequentemente teríamos que, pela mesma razão, considerar inadmissível a prorrogação dos contratos celebrados sob a égide de tal diploma legal e mesmo novas contratações feitas com base em ata de registro de preços firmada de acordo com a lei anterior (que constituem novas relações jurídicas, derivadas de uma relação obrigacional anterior). 

Portanto, a questão perpassa o problema da prorrogação da ata de registro de preços. Não haveria qualquer fundamento jurídico para, por um lado, vedar a prorrogação da ata, e por outro lado admitir novas contratações com base nela (a partir de 30/12/2023) ou a prorrogação, a partir de tal data, dos contratos celebrados.

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