CFM e a Resolução Atesta: Conflitos de Competência e Direitos dos Profissionais de Saúde

A recente edição da Resolução CFM nº 2.382/2024, que estabelece a obrigatoriedade do uso da plataforma "Atesta CFM" para emissão e gerenciamento de atestados médicos, gerou controvérsia no setor de saúde. A medida enfrentou contestação judicial devido a alegações de abuso de poder regulamentar, invasão de competências e possíveis violações de direitos dos profissionais de saúde e pacientes.

Este artigo explora os principais pontos de debate em torno dessa resolução, destacando os impactos práticos, jurídicos e éticos para o setor médico.

 

A Resolução CFM nº 2.382/2024: Entendendo o Contexto

A Resolução institui o sistema "Atesta CFM" como único meio oficial para emissão de atestados médicos, digitais ou físicos. Com isso, todos os profissionais médicos seriam obrigados a utilizar a plataforma ou sistemas integrados a ela. Além disso, a resolução estabelece restrições quanto ao uso de plataformas alternativas e determina requisitos específicos para validação e armazenamento dos atestados emitidos.

A justificativa para a criação do "Atesta CFM" seria a necessidade de combater fraudes em atestados médicos e garantir maior segurança e rastreabilidade. No entanto, diversas entidades e especialistas apontam problemas na forma como a medida foi imposta.

 

Principais Argumentos Contra a Resolução

  1. Invasão de Competências e Ausência de Base Legal
    • A regulamentação de atestados médicos digitais já é prevista em leis federais e regulamentações de órgãos como o Ministério da Saúde e a ANVISA. A resolução do CFM, ao impor uma única plataforma obrigatória, pode ser interpretada como extrapolação de suas atribuições, invadindo competências legislativas exclusivas da União.
    • O artigo 14 da Lei nº 14.063/2020 já define critérios para a validação de documentos médicos eletrônicos, estabelecendo que cabe ao Ministério da Saúde e à ANVISA especificar os critérios para sua aplicação. A resolução do CFM aparentemente desconsidera essa divisão de responsabilidades.
  2. Monopólio e Conflito de Interesses
    • A centralização do gerenciamento de atestados em uma única plataforma controlada pelo CFM levanta preocupações sobre práticas monopolistas. A medida restringe a livre escolha dos médicos por outros sistemas, criando barreiras para o mercado de plataformas digitais de saúde.
    • A possibilidade de exploração comercial dos dados sensíveis armazenados no "Atesta CFM" também é motivo de crítica, com questionamentos sobre o uso ético e legal dessas informações.
  3. Privacidade e Proteção de Dados
    • A resolução não esclarece como os dados dos pacientes serão tratados, armazenados e compartilhados. Isso contraria princípios da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que exige transparência e garantias sobre o tratamento de informações sensíveis.
    • A obrigatoriedade de integração de outras plataformas ao "Atesta CFM" impõe riscos de compartilhamento indevido de dados, o que pode violar a privacidade de pacientes e médicos.
  4. Impactos Práticos para os Profissionais de Saúde
    • A exigência de adaptação imediata à plataforma pode gerar custos operacionais significativos para profissionais e instituições médicas, especialmente em regiões menos desenvolvidas, onde o acesso à tecnologia é limitado.
    • Muitos médicos questionam a exclusão de atestados emitidos fisicamente ou por sistemas não integrados, alegando que essa imposição desconsidera a realidade prática do exercício da medicina em diversas localidades do país.

 

Análise Jurídica da Questão

Do ponto de vista jurídico, a decisão que suspendeu os efeitos da resolução apontou para a ausência de proporcionalidade e razoabilidade na medida. Segundo o entendimento judicial, a norma:

  • Não respeitou os limites do poder regulamentar: A competência do CFM deve se restringir à supervisão ética e disciplinar dos profissionais, não podendo legislar ou criar obrigações que extrapolem sua função.
  • Exorbitou a legislação vigente: A Lei nº 14.063/2020 já regulamenta a assinatura digital para atestados médicos, cabendo ao Ministério da Saúde e à ANVISA a edição de normas complementares.
  • Viola princípios constitucionais: A obrigatoriedade imposta pela resolução desrespeita o princípio da livre iniciativa e o direito dos médicos ao exercício de sua profissão sem imposições desnecessárias.

 

Impactos e Implicações para o Setor de Saúde

A suspensão da resolução abre espaço para um debate mais amplo sobre a regulamentação de práticas médicas em um cenário de crescente digitalização. Enquanto a digitalização é essencial para combater fraudes e otimizar processos, ela não pode ser implementada à custa de monopólios, violações de privacidade ou exclusão de profissionais e pacientes.

As partes envolvidas, incluindo o CFM, o governo federal e entidades representativas da classe médica, terão que buscar um equilíbrio entre inovação tecnológica, proteção de dados e os direitos dos profissionais de saúde.

 

Conclusão: Um Momento de Reflexão e Ajuste

A Resolução CFM nº 2.382/2024 traz à tona questões importantes sobre o papel das entidades de classe na regulamentação de práticas profissionais. Embora o combate a fraudes e a digitalização sejam metas legítimas, elas devem ser alcançadas dentro dos limites legais, respeitando os direitos dos profissionais e pacientes.

O caso demonstra a necessidade de maior diálogo entre os atores do setor de saúde, além de uma regulamentação clara e transparente que equilibre eficiência, segurança e respeito aos direitos fundamentais. A suspensão da resolução não deve ser vista como um retrocesso, mas como uma oportunidade para construir um modelo mais justo e inclusivo para o futuro da saúde no Brasil.

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