A responsabilidade do Estado em casos de doação de medula óssea: o paradigma da doação voluntária

Em dezembro de 2018, uma engenheira de 31 anos, voluntária no ato de doar medula óssea ao REDOME/INCA, enfrentou um agravamento drástico em seu quadro de saúde: complicações raras, como osteomielite e lesões no nervo ciático, resultaram em danos permanentes e multidimensionais. A partir desse cenário, moveu-se uma ação judicial contra o Instituto Nacional do Câncer (INCA), o Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea (REDOME) e a União, com pedidos que incluíam indenização por danos materiais, morais, estéticos e pensionamento mensal equivalente a seis salários mínimos. Este caso evidencia a responsabilidade objetiva do Estado, embasada na teoria do risco administrativo, e a necessidade de reparação justa a quem assume voluntariamente riscos em prol da coletividade.

 

Contexto e trajetória do caso

Graduada em engenharia de produção, com histórico profissional sólido e habilitação para conduzir motocicleta – seu principal meio de transporte –, a autora se dispôs a doar medula contendo células-tronco. Iniciou os exames e foi orientada pela equipe médica de que o procedimento era simples, rápido e sem riscos. Entretanto, na coleta realizada em 19 de dezembro de 2018, ocorreu uma lesão no nervo em seu membro inferior e o desenvolvimento de osteomielite, condição que a manteve afastada do trabalho por três semanas de internação – incluindo Natal e Ano Novo – e foi tratada por mais de dois meses com internação e hospital-dia. Em janeiro de 2019, o tratamento foi reconhecidamente por erro médico, inclusive pelo neurologista da FURG, e seu quadro culminou em benefício previdenciário até outubro de 2021. O laudo final confirmou sequelas permanentes e incapacidade para retorno ao emprego anterior.

 

Os pedidos iniciais: o que se buscava

Na petição inicial, a autora pleiteou:

  1. Inversão do ônus da prova,
  2. Pensionamento equivalendo a seis salários mínimos mensais,
  3. Reembolso de gastos com tratamento particular (transporte, consultas, exames e cuidados para ela e seu filho),
  4. Danos morais: R$ 300 000,00 para a autora e R$ 150 000,00 para o filho,
  5. Danos estéticos: R$ 300 000,00 pela alteração física resultante,
  6. Gratuidade de justiça.

 

Defesa da União e contestação

A União argumentou que a relação não seria de consumo (aplicação do CDC), que os gastos estavam sendo ressarcidos, que a osteomielite seria uma complicação rara (caso fortuito), e que não haveria nexo de causalidade. Além disso, questionou os danos estéticos e o pensionamento vitalício, alegando que o benefício previdenciário recebido (R$ 1 755,06 desde janeiro de 2019) seria suficiente.

 

Sentença de 1º grau: reparação ampla

O juízo de 1º grau reconheceu:

  • Aplicação da responsabilidade objetiva do Estado (art. 37, § 6º, CF);
  • Nexo causal entre doação voluntária e complicações;
  • Exclusão da aplicação do CDC;
  • A condenação incluiu:
    • Reembolso dos gastos comprovados (tratamentos e cuidados para mãe e filho),
    • Pensionamento escalonado até recuperação ou final da condição,
    • Danos morais: R$ 500 000,00 para a autora, R$ 200 000,00 para o filho,
    • Danos estéticos: R$ 300 000,00.

O curso da reparação foi delimitado com base nos artigos 949 (reembolso) e 950 (lucros cessantes) do Código Civil, estabelecendo previsibilidade e continuidade. A decisão incluiu compensação proporcional por perda de chance de ascensão profissional, além de fundamentação completa para juros e correções conforme jurisprudência vinculante.

 

Apelação e voto do TRF4

A União apelou, defendendo a inexistência de nexo causal, a hipótese de caso fortuito e a ausência de danos estéticos e pensionamento vitalício. Contudo, o relator do TRF4 manteve integralmente a sentença de primeiro grau, destacando:

  • A teoria do risco administrativo se aplica a procedimentos voluntários com risco inerente e benefício social;
  • A responsabilidade independe de culpa;
  • A osteomielite é rara, mas prevista como risco do procedimento;
  • A autora apresentou lesão permanente (70% funcional) – sequela quantificada por laudo complementar de 2023;
  • O dano existiu e exige reparação, mesmo sem erro médico direto;
  • Justificou os valores: pensionamento proporcional, danos morais, estéticos e compensação pela dor, abalo familiar e precariedade financeira.

O acórdão reafirmou, sem margem para redução, a decisão de primeira instância: a reparação era adequada, justa e juridicamente fundamentada.

 

Conclusões e implicações

Este caso ressalta a clara aplicação da responsabilidade objetiva do Estado em situações voluntárias e de alto risco como a doação de medula óssea. A jurisprudência e mecanismos legais exigem que o Estado arque com os riscos esperados de tais atos, mesmo que raríssimos, desde que comprovado o nexo causal. A decisão demonstra equilíbrio ao reconhecer:

  • Reparação material adequada (gastos e perda de chance),
  • Pensão escalonada justa, garantindo dignidade sem enriquecimento,
  • Dano moral e estético valorizado, considerando o impacto físico, psicológico e social,
  • Proteção ao núcleo familiar, refletida na inclusão do filho.

A essência está: a doação voluntária de medula óssea envolve risco compartilhado – e o Estado, ao administrar esse processo em prol da coletividade, deve oferecer proteção integral aos doadores que sofrem efeitos adversos. Essa lição vale tanto para futuras ações, quanto para aprimoramento das políticas públicas de saúde e consentimento informado.

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